Na Casa Fernando Pessoa, no passado dia 21 de setembro, RUI NUNES falou do meu OSSÁRIO. Publico aqui alguns excertos da transcrição da conversa:
“Há uma coisa que me parece ser característica da poesia do José Rui Teixeira, de toda a sua poesia: o que Kierkegaard chamava o confronto com Deus. O Eduardo Lourenço escreve sobre essa questão, presente em Ou – Ou. É esse confronto com Deus. […] Para Kierkegaard, sem desespero não se entra na fé; com desespero, não se sai dela. E isto é o confronto do homem crente com Deus. É este confronto que é brutal na poesia do José Rui Teixeira, porque contrariamente à poesia dita mística (termo de que eu não gosto), em que só há, na verdade, um caminho, que é o caminho do homem para Deus, aqui não. Aqui há uma explosão do significado a partir do significante. A ideia não é minha, é do Claude Lévi-Strauss, apropriada pelo Michel Foucault, na introdução de Naissance de la clinique. É isto: o que há, neste livro, é essa apropriação do significante e, ao mesmo tempo, a explosão do significado, que ultrapassa de um modo violentíssimo o próprio significante. Isto é: há aqui uma espécie de destruição do signo e isso é interessante, porque é por isso, por essa explosão do significado, que o mundo entra na poesia do José Rui Teixeira. E é essa entrada no mundo e é a violência dessa entrada no mundo que resultam da explosão do significado, como uma bomba… os estilhaços do signo. É aí que a poesia do José Rui Teixeira se separa – e, para mim, de uma maneira violentíssima – da poesia dita mística. Refiro-me especificamente à poesia que podemos considerar mística em Portugal, que é pouca e que repete, ao longo dos séculos, quase sempre a mesma relação unívoca do homem com Deus: o mundo desaparece ou nem sequer está presente nessa relação, porque o que essa poesia mística faz é exatamente sair do mundo – e sair do mundo para Deus. Não há confronto ou o confronto que há é muito ténue. Só me lembro de três verdadeiros místicos que escreveram poesia. Um escreveu-a nos sermões: Eckhart. Recordo um texto sobre o olho de Deus. Creio que afirma que o olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê a mim. Há aí uma espécie de explosão do significado, uma explosão da relação do homem com Deus. Não explode, talvez, no sentido que lhe dá o José Rui Teixeira, mas explode. E nos outros dois também explode, na poesia de Santa Teresa de Ávila e na de São João da Cruz. Há aí também uma explosão, mas não no sentido que lhe dá o José Rui Teixeira. Aquilo que é extremamente interessante e, para mim, muito raro é que essa explosão é uma explosão em que o mundo está presente. E a violência do mundo está presente. E mais: é uma relação de confronto entre o homem e Deus e é um confronto não resolvido. A crença é um ato de não-resolução, porque se eu acredito é porque não sei. A crença é esse ato de não-resolução da crença. Nos verdadeiros crentes, existe essa relação nunca resolvida do homem com Deus. E, no caso do José Rui Teixeira, essa relação não resolvida é aquilo que ele encontra no mundo e que aumenta a irresolução. Isto é o que eu penso.
[…]
O José Rui Teixeira é o espião de Deus. É verdadeiramente o espião de Deus. Esta é realmente é a expressão que melhor se aplica à sua poesia.
[…]
Nos outros místicos, o que está escrito é a supressão da queda. É a ascensão. E na poesia do José Rui Teixeira o que está escrito é a queda. É como o negativo da atitude mística tradicional. A queda, na sua poesia, não é uma etapa, é um fim. Não ultrapassa o plano da queda. E é esse o desespero de que fala Kierkegaard. É essa relação de suspeita em relação a Deus. E é essa queda, tantas vezes inscrita nos seus poemas, que torna o José Rui Teixeira, talvez, o único poeta kierkegaardiano – absolutamente. Tal como em Kierkegaard, talvez até mais Kierkegaard do que o próprio Kierkegaard.
Quando leio, procuro esfriar a emoção, eliminá-la de uma segunda leitura para poder ir ao osso. Para lá chegar é preciso eliminar a emoção. Esse osso é a queda. Esse osso não é a superação da queda; esse osso é a queda. E é interessante ver que, cada vez que o José Rui Teixeira se dirige a Deus, elimina os sinais que indicam que está a dirigir-se a Deus. Desde a inicial minúscula e o ‘tu’… e depois confunde-se Deus com a realidade. Às vezes o ‘tu’ – e refiro-me a toda a sua poesia – é o ‘tu’ que já não é Deus, ou seja: é essa dimensão da totalidade do divino, do divino que se dilui no mundo, que o aproxima muito mais do Eckhart.”

