CORPO CELESTE

Out 13, 2025 | Laboratório

Introdução ao catálogo da exposição de pintura de Celeste Ferreira – Corpo celeste ou a medida da desordem de um sistema, Vila Nova de Gaia: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 2025 [p. 5]:

CORPO CELESTE
ou a medida da desordem de um sistema

Há muito que repito as palavras de María Negroni, em El arte del error: «Uno de los malentendidos más viejos en materia literaria es el que se empeña en clasificar las obras en categorías, géneros, escuelas, allí donde, en sentido estricto, no hay más que autores, es decir, aventuras espirituales, asaltos y expediciones dificilísimas que se dirigen a un núcleo imperioso y siempre elusivo». Há muito que o repito por uma convicção anódina, uma espécie de apaziguamento da angústia do exegeta no ofício de tornar a realidade inteligível, classificada, compartimentada: um modelo taxonómico do mundo.

É certo que somos o que somos porque fomos capazes de organizar o mundo em modelos taxonómicos que nos possibilitaram domesticar concetualmente a realidade com o propósito de, progressivamente, a domesticarmos nas dimensões pragmáticas da vida. É certo que nos tornamos competentes nesse exercício, mas também é certo que, muitas vezes, ficamos fechados nesses comparti-mentos, perdendo a consciência da natureza orgânica da função de existir que supõe as distensões da inevitabilidade da entropia, ou seja: da medida da desordem de um sistema.

Talvez por ter nascido com os olhos doentes e com uma sinestesia que se agita entre a aspereza e a maciez, a arte de Celeste Ferreira encontra em mim os desníveis desse som que, entre a queda e a perda, não separa o corpo da ruína, o desejo da morte. O expressionismo não escolarizado da sua gramática é generativo: com um conjunto finito de possibilidades sintáticas e semânticas, pode gerar um conjunto infinito de paisagens. E, nas artérias reentrantes dessas paisagens, com todo o peso do coração no centro (como se lê num poema de Herberto Helder), habita o corpo: um corpo infuso (isto é: unido intimamente), um corpo celeste… aqui e agora, com a espessura e a opacidade de polimorfismos, policromias, polissemias muitas.

Para Foucault, comentar é admitir por definição um excesso do significado sobre o significante, um resto necessariamente não formulado do pensamento que a linguagem deixou na sombra, resíduo que é a sua própria essência, retirada do seu secreto, do seu segredo. Creio que a arte e a poesia situam-se no âmago do excesso do significante sobre o significado, um resto necessariamente não formulado da linguagem que o pensamento deixou na sombra, resíduo que é a sua própria essência, mantido no seu secreto, no seu segredo.

E é isso que aqui encontramos: o que explica não é intencional, nem se dispõe aos mecanismos explicativos, nem se confina nos compartimentos exíguos desses mecanismos. Diz da epifania da sua interioridade apenas sedimentos e traz à intimidade dos gestos o rumor dessas «aventuras espirituales» de que nos fala María Negroni… «asaltos y expediciones dificilísimas que se dirigen a un núcleo imperioso y siempre elusivo». No expressionismo não escolarizado da sua gramática, a arte de Celeste Ferreira é rudimento para a condição de ser, mas – mais profundamente – é exercício e paisagem de um sentido poético para a função de existir.

A sua arte implicita o espelho, subentende o reflexo nas metamorfoses dos rostos, desse único rosto múltiplo e diverso que transcorre entre cada identidade e cada alteridade. Aí, os olhos são pórticos para dentro de ver o mundo e as mãos partilham a natureza do espelho que sopesam: são mãos subentendidas na vertigem da latência que, por definição, é o tempo que decorre entre o estímulo e a resposta correspondente. A arte de Celeste Ferreira é, por isso, da ordem da inteligência e da intimidade: resiste, convoca, busca no silêncio dos seus silêncios outras dimensionalidades. É arúspice, denuncia, tateia, antecipa. É corpo escasso, provisório… corpo inteiro, nu… corpo celeste.

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