No vigésimo aniversário da morte do poeta Daniel Faria:
Há vinte anos morria Daniel Faria. Morreu no dia 9 de junho de 1999, aos 28 anos de idade, no Hospital de São João, no Porto. Nessa altura, poucos sabiam o que hoje se tornou claro: que aquele discreto rapaz, que terminava o seu noviciado beneditino no mosteiro de Singeverga, foi um dos mais importantes poetas portugueses nascidos no século XX, e que caberá ao século XXI a tarefa de descobri-lo. De facto, a “hora de legibilidade” de uma obra ou de autor, não é necessariamente coincidente com o momento histórico da sua origem. Refere, a esse propósito, Walter Benjamin: “O índice histórico das imagens diz, de facto, que não só elas pertencem a uma época específica, mas sobretudo que alcançam apenas a sua legibilidade numa época determinada”. Decorridos vinte anos da sua morte, será que não chegou o momento da sua luz ser entrevista, com a limpidez histórica e espiritual que a sua poesia merece?
Eu avançarei três razões para a sua urgente leitura. A primeira prender-se, paradoxalmente, com a sua inatualidade. De facto, um dos traços desassombrados da obra de Daniel Faria é o desta intransigente inatualidade, como se ele resistisse a integrar a sociedade do espetáculo, onde tudo parece estar submetido ao primado do imediato, do simultâneo, do comunicável. Daniel Faria reivindica a vida do espírito, seja na sua expressão artística ou religiosa, como “espaço não comunicante”, ligando-se ao que Levinas escreveu sobre a arte: “A arte não pertence à ordem da comunicação”. Este obscuro que só pelo obscuro se toca, aproxima-nos justamente do conhecido de natureza mística. Por isso, Daniel Faria vai explicando: “Deus sobe os degraus com a noite nos braços.” Ou: “A noite ativa a noite — é um motor imenso”. Ou ainda: “O amante tece da pobreza o vestido novo.”
A segunda razão é esta: do mesmo modo que a tradição insiste em dizer que o monge André Rubliev não pintou, mas escreveu os ícones, nós poderemos dizer que o monge Daniel Faria não escreveu, mas pintou os poemas. De facto, mais comprometido com a tarefa do dizer (“A união/ É desposarmo-nos brancos/ Sem palavras”), Daniel esteve vitalmente empenhado em redesenhar o ícone (“Que te veja — ó incêndio”), restituindo à poesia a sua vocação litúrgica. O que é o ícone. O ícone é a pulsação do vasto invisível, espelho metafísico, lençol que fixa “espetáculos misteriosos e sobrenaturais”, como uma máxima de Dionísio, o Areopagita, refere. Mas não só, o ícone acaba por constituir também uma espécie de onda propagadora da própria realidade divina. A representação faz emergir misteriosamente a presença. A tarefa do poeta é, assim, equivalente à de Moisés diante da sarça ardente: “Perceber que tudo se incendeia/ Ao estender do corpo.”
Por fim, a terceira razão é constatar como a sua poesia nos coloca na esfera do drama: “Tenho medo de morrer depois da morte/ Tenho medo de morrer antes da vida.” Numa época onde parece não haver nada a espera ou a perder, o drama extinguiu-se. A vida torna-se progressivamente indolor. Contrariando essas derivas, Daniel Faria recorda que há em nós um divino drama em curso: “Transforma o coração na coisa desamada/ No vaso a transbordar que quebras com a boca/ E asperge/ A tua pulsação no meu sangue.” É difícil encontrar na poesia portuguesa contemporânea outra evocação tão constante do sangue, da ferida, da nudez, da lâmina, da solidão ou da morte. Mas também é difícil outra vocação tão jubilosa da condição nupcial da vida.
José Tolentino Mendonça
E / Expresso, Edição 2432, 8 junho 2019, p. 80.