Pode a arte trazer algum conforto face à presença da morte, não a morte intemporal, mas a morte concreta, presentificada no rosto do Outro? Esta é a questão que Phil Elverum levanta em “Death is real”, a faixa de abertura de A crow looked at me, álbum de 2017, o oitavo lançado sob o pseudónimo Mount Eerie:
“Death is real
Someone’s here and then they’re not
And it’s not for singing about
It’s not for making into art”
Phil Elverum perdeu a mulher — a música e artista plástica Geneviève Castrée — em 2016, devido a um cancro pancreático, diagnosticado quatro meses depois do nascimento do primeiro filho. Na sequência deste acontecimento, e depois de ponderar abandonar a carreira musical para se dedicar ao filho, Elverum tomou a decisão de compor e gravar o álbum durante seis semanas no quarto onde a esposa morrera e com os instrumentos que lhe pertenciam.
Escritas como notas de diário e relatando os detalhes mais íntimos e perturbadores da doença de Geneviève, as letras de Mount Eerie aproximam-se do lado mais experimental dos “Confessional Poets” americanos dos anos 60 [assim chamados depois da publicação de Life studies, de Robert Lowell]. Na verdade, tal como Elverum, estes, para além de alargarem o potencial expressivo do “eu” [pelo relato de experiências habitualmente ostracizadas do discurso poético, por serem consideradas demasiado vergonhosas ou chocantes], procuravam sobretudo renovar a linguagem da lírica, através da diluição das fronteiras entre os géneros literários e entre a prosa e o verso.
Por tudo isto, A crow looked at me pode tornar-se um objeto estético de difícil apreensão. Musical e literariamente despojado, impõe-se ao ouvinte como experiência de confronto com a morte e com a dizibilidade da mesma. Afasta-se, por isso, da função catártica atribuída por Aristóteles à poesia, já que as palavras de Elverum não expiam a morte, antes questionam [negando] a legitimidade e a pertinência de a cantar: “When real death enters the House/ all poetry is dumb […] All fails/ My knees fail/ My brain fails/ words fail”.
As palavras falham, porque, afinal, um objeto simbólico é apenas a substituição de uma ausência. Elverum lembra-nos repetidamente [por exemplo, ao evocar o ritual do lançamento das cinzas da mulher na natureza] daquilo que os símbolos não são: não são a falta que presentificam. E, como símbolo, A crow looked at me vem revelar essa ausência, bem como a natureza ambígua dos símbolos, que, paradoxalmente, são e não são aquilo que designam. Nesse sentido, é tanto um álbum sobre a morte como sobre as limitações da arte. Perante a morte concreta, a poesia não cura nem liberta.
Mount Eerie, A crow looked at me [P. W. Elverum & Sun Ltd., 2017]
Hélder Moreira